quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Um surdo, quase cego, carece de justiça.

Li este texto no blog da Carol Fomin Arquitetura. Achei revoltante e resolvi postar aqui. Leiam com atenção e vejam o "CARINHOSO TRATAMENTO" com que os "donos do poder" nos tratam. "Muito bonito isso". "Parabéns". "O Brasil vai longe assim".

Minha revolta!

Hj o meu post um protesto contra o INSS, e demais órgãos Públicos.
Por favor tenha um pouco de paciência e leia até o fim.
Há alguns meses tenho acompanhado como intérprete de um amigo surdo que por uma questão de privacidade, vou usar nomes fictícos. Mas a história é verdadeira, mesmo que pareça absurda.
Meu amigo Antônio é surdo, casado com a Alessandra, também surda e pai do Guilherme de 5 anos que é ouvinte.

O Antônio está em um processo junto ao INSS pois além da Deficiência Auditiva bilateral ele sofre de um glaucoma gravíssimo em ambos os olhos. Por já ter passado por 2 cirurgias, e perdendo parcialmente a visão, corre o sério risco de perder totalmente a visão, sua principal forma de comunicação e contato com o mundo, uma vez que já é deficiente auditivo bilateral.

Por precaução e para tentar prolongar ao máximo a visão do Antônio sua médica oftalmologista que o acompanhou desde o príncípio nas cirurgias e sabendo da gravidade de seu problema, desde que sua empresa em que trabalhava o demitiu, ela o recomendou que tentasse a aposentadoria por invalidez pelo INSS, o que já foi feito por diversas vezes, todas sem sucesso.

Como todas as vezes em que ele foi lhe foi negado o benefício sem nenhuma tentativa de comunicação verdadeira e como lá não tinha intérprete e sua esposa que é um pouco oralizada não podia entrar com ele, ele me chamou para acompanhá-lo como intérprete de LIBRAS.

Aí começou o meu dia….
Saímos as 7:00 em ponto da João Dias para a Liberdade (Pça Nina Rodrigues). Quem mora em SP sabe que é bem longe.
Chegamos lá 8:45 e esperamos em uma fila do lado de fora do INSS pois os 4 seguranças que guardavam o portão informaram que não poderíamos entrar pois lá dentro a fila era enorme, expliquei que tinhamos hora marcada, mas rapidamente descobri com as gargalhadas do 1o da fila que me disse:
- Querida, bem-vinda, todos nós temos hora marcada.

Fui para o fim da fila beirando a calçada e passando por jovens, idosos, gestantes, cadeirantes, amputados, pessoas com os mais diversos problemas. Eu e Antonio aguardamos por cerca de 1h em pé do lado de fora, até que comecei a ficar com uma vontade enorme de fazer xixi e fui lá implorar para que me deixasse entrar, que prometia que voltaria para a fila. Depois de muito insistir os seguranças se entreolharam e me deixaram entrar. Fui ao WC e nao resisti ao ver o WC resErvado para Pessoas com deficiencia e fotografei.



Mas isso é só um detalhe. Enfim, depois que entramos, fomos para outra fila de mais 1h dentro do INSS na fila que vcs podem ver abaixo na foto.



Quando finalmente chegamos próximos ao atendimento e poderíamos entrar…. Eles não autorizaram que entrássemos os 2, pois não pode entrar acompanhante. Ah…. Fiquei revoltada e disse:
- Amigo eu VOU entrar. Eu não sou acompanhante, nem familiar. Sou intérprete de LIBRAS, vim para interpretar, fiquei quase 3 h na fila para isso e é isso que vou fazer.

Depois de uns 5 minutos consegui entrar. Só EU, o Antonio teve que ficar de fora. O que é outro absurdo pois eu não poderia por princípios éticos de intérprete responder nenhuma informação por ele, mas enfim… queríamos mesmo era resolver o problema.

Entrei e minha revolta maior ao ver a sala do INSS vazia. Vejam a foto:



Que revolta! De pensar que eu e todas aquelas pessoas dentre elas idosos, gestantes, pessoas de muletas, que foram obrigadas a ficar horas em uma fila sendo que a sala de espera estava vazia, e tinha cadeiras perfeitamente confortáveis para aguardar o atendimento.

Enfim, depois de mais meia hora aguardando (agora sentada). Fui chamada para o atendimento:
- Por favor, o Sr. Antonio está desempregado?
- Não sei, teríamos que perguntar ao Sr. Antonio, respondi.
-
Mais 5 minutos para o gerente da agencia liberar o Antonio para entrar. Depois de algumas perguntas simples, o gerente resolver perguntar para a médica perita se ela autorizaria que eu entrasse junto com o Antonio na sala de perícia. ELA NÃO AUTORIZOU!

Eles falaram que a agencia tem um funcionário que fez esse “curso de aprender esses gestos de códigos”. E que a médica só aceitaria um intérprete da própria agência. Brigamos, pedimos e imploramos para que ele fosse atendido neste mesmo dia, já que já haviamos passado por tudo isso. A resposta que tivemos foi:
- É melhor não se indispor com a médica perita, pode ser pior para o Antonio e ela pode não querer aprovar o benefício dele.

Para não prejudicar o Antônio, ele mesmo desistiu, contrariado é claro. E eu, coloquei meu rabinho entre as pernas e fomos embora. Agora com data remarcada para próxima 2a feira as 7hs da manha quando o funcionário que sabe “esses códigos de sinais” estaria presente.

Minha tristeza é que o Antonio foi lá, na hora marcada, o funcionário realmente só sabia sinais básicos e usava muitos gestos para se comunicar, e pior o Antonio não foi atendido pela perita ainda. Ela remarcou para 3 dias depois as 14hs. Não sei onde isso tudo vai acabar.

Me pergunto: ONDE ESTÁ O RESPEITO AO CIDADÃO?
O RESPEITO AOS DIREITOS HUMANOS ? ONDE ESTÁ A ACESSIBILIDADE? ACESSIBILIDADE NÃO É SÓ CONSTRUIR RAMPAS. ACESSIBILIDADE É O DIREITO DO ANTÔNIO A COMUNICAÇÃO, O DIREITO QUE ELE TEM DE ENTENDER E DE SE FAZER ENTENDIDO.

Não sei a quem reclamar, onde reinvidincar, por isso expresso aqui o meu dasabafo!




Publicada por Carol Fomin em 15.12.10
Etiquetas: acessibilidade, inss, revolta, surdez

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Sonhos e utopias (im)possíveis

Ricardo Gondim

Morre mais um ano. Parecidíssimo com os demais, os meses desta década vieram marcados por tragédias que se misturaram com poucas alegrias. Rio de Janeiro e Haiti se misturaram às dores dos alagoanos. O sofrimento de tantos miseráveis clamou em alto e bom tom: a humanidade não pode esquecer-se de que o preço de um possível descontrole ambiental será altíssimo. O conflito iniciado pelo Ocidente, que tenta esvaziar a agenda fundamentalista muçulmana, parece não ter fim. Mais uma vez a história lembra que é mais fácil começar uma guerra que terminar.

Com a queda de alguns mitos da modernidade, o mundo padece de uma enxaqueca histórica. Não se acredita mais no progresso sem limite nem na agenda consumista do neoliberalismo. Sobrou uma ressaca, que imobiliza os ideais e as ações transformadoras da história; ressaca que alguns chamam de pós-modernidade. Se a alternativa da alienação não convém, parece que não há vigor para sonhar na reconstrução de outro mundo possível. Porém, sonhar é preciso. Nossos filhos e filhas não merecem herdar um mundo onde impera o desdém.

Trabalhemos pelo alvorecer de um novo dia em que os rios não poluam os oceanos; os peixes não morram asfixiados em águas podres; o raiar do sol seja menos abrasador, pois homens e mulheres conscientes restauraram as camadas estratosféricas porque adquiriram uma nova consciência ecológica. Aguardemos o dia em que novas leituras do Gênesis devolvam a humanidade à sacralidade do jardim e todos se comprometam a cuidar da criação, recompondo a natureza, que geme devido à insanidade do pecado.

Trabalhemos pelo despontar de um novo tempo em que se acabarão as fronteiras entre países, os muros étnicos e as cancelas rodoviárias; em que nos guichês de passaporte o pobre não seja impedido de procurar fugir de sistemas iníquos e o doente encontre o hospital que salvará a sua vida.

Trabalhemos pelo futuro quando espadas serão transformadas em arados. Procuremos ressignificar a esperança de que os bilhões de dólares gastos com armas e bombas sejam relocados em tratamento de esgoto, que aumenta a expectativa de vida de milhões de crianças. Repitamos: é possível acreditar que as fortunas desperdiçadas em cassinos sejam úteis em pesquisa pela erradicação da malária. Esforcemo-nos por esboçar outra realidade, em que se considera inadmissível uma bolsa custar mais que dois anos de salário de um operário.

Trabalhemos para que surjam muitas Madres Teresa de Calcutá em diversos continentes, todas empenhadas em acolher os moribundos. Sonhemos com mais profetas como Martin Luther King -- e que eles não sejam exceção rara. Concebamos que as penitenciárias políticas serão implodidas e que ninguém jamais seja preso por pensar diferente. Criemos um mundo em que os instrumentos de tortura se tornem peças macabras de museu e que não reste nenhuma ilha onde se maltrata outro ser humano em nome de ideologia, religião ou regime político.

Trabalhemos para que deixem de existir corregedorias, grampos telefônicos e espiões e que seja proibido bisbilhotar a privacidade das pessoas. Contribuamos para que o mundo se liberte das delações traiçoeiras contra o próximo. Convençamos os nossos filhos que é dever de todo homem e de toda mulher proteger o seu irmão. Esforcemo-nos para que os orfanatos não precisem manter as crianças por muito tempo porque as filas de adoção se multiplicaram; também, que os idosos nunca fiquem esquecidos em clínicas, à espera da morte.

Trabalhemos para que se multipliquem as orquestras e que os prefeitos construam coretos em todas as praças; e que as famílias se reúnam nos fins de semana para ouvir a apresentação vespertina de música. Não deveria ser considerado um delírio esperar que se projetem bons filmes em vilarejos e em cidades remotas. Oxalá bibliotecas ambulantes distribuam poesia para os tristes e boa literatura para os sonhadores; que escolas treinem bons malabaristas para a alegria das sextas-feiras e que mais trapezistas desafiem a gravidade nos picadeiros.

Trabalhemos para que os experimentos com células-tronco deem certo, e que muito em breve os tetraplégicos sejam curados e saltem como gazelas pela vida. Incentivemos quem trabalha no Projeto Genoma; e que eles terminem de mapear a estrutura da vida biológica para que se reduza o número de crianças com doenças genéticas.

Trabalhemos para que o turismo sexual seja banido e extinto entre os povos; que a pedofilia se torne um anacronismo; que se desarticulem os cartéis de droga -- o tóxico tem que parar de ceifar vidas, já que, um dia, pouquíssimas pessoas precisarão entorpecer a mente para tolerar a vida; os êxtases virão do encontro com a beleza, a bondade e a solidariedade.

Trabalhemos por um novo céu e uma nova terra. Todavia, reconheçamos que esse porvir não acontecerá enquanto a humanidade tolerar o pressuposto da sobrevivência do mais forte, ou da exclusão racial e da discriminação social. Optemos pelo legado de sabedoria que nossos pais nos deixaram, que nos convoca a construir a história. Incumbidos por Deus de promover o bem, represar o mal e disseminar a justiça, acreditemos que o futuro chegará de acordo com a semente que plantarmos no presente.

O futuro que ansiamos nascerá tanto de nossas mãos como de nossos ouvidos. Primeiro, ouçamos as verdades e os princípios eternos que Jesus nos ensinou. Depois, arregacemos as mangas. A vida espera por nós. Nossos filhos e netos não podem correr o risco de sermos negligentes ou apáticos. Qualquer hesitação pode redundar em desastre. Já é tarde!

Soli Deo Gloria

6/12/10

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

OS EVANGÉLICOS NO BRASIL CONSTRUINDO SUA HISTÓRIA

NILSON GOMES

A igreja evangélica no Brasil hoje esta divida em quatro tipos distintos:


1) As igrejas que tem uma visão engessada;

2) As igrejas que tem uma visão periférica;

3) As igrejas que tem uma visão de mercado;

4) As igrejas que tem uma visão acolhedora. (Podemos dizer visão do reino).


Todos estes modelos de igreja, com exceção da última que é a que tem uma visão acolhedora, tem trazido serias

dificuldades para uma pregação verdadeiramente seria e comprometida com o reino de Deus.

Dentro destes modelos estão as mais variadas visões. Visão míope, visão de mercado e de negócios, mensagens

irrelevantes, metodologias ultrapassadas e arcaica, cultos a tradições e assim por diante.

Fala-se muito em avivamento hoje no Brasil, porém historicamente o Brasil se quer experimentou um genuíno

avivamento. Pois enquanto as igrejas evangélicas estiverem mais presentes na mídia por causa de seus erros, e

por causa da inescrupulosidade de seus lideres do que por causa da piedade, ela estará totalmente longe do real

avivamento e absolutamente fora do modelo de igreja proposto por Jesus.

Não se pode medir uma igreja pelo crescimento quantitativo sem qualidade em sua essência. O grande

avivamento de uma igreja não esta nas multidões que superlotam os templos aos domingos, nem nas explosões

de dons espirituais, nem nos cultos animados, nem tão pouco nos cultos solenes dentro dos padrões litúrgicos da adoração. O avivamento de uma igreja é medido pelo grau de seu envolvimento com a visão do reino.

O entendimento que estou tendo é que as igrejas evangélicas brasileiras, (todavia é bom ter cuidado com a generalização) mas em sua grande maioria têm adotado a mesma filosofia dos sistemas de televisão, que funcionam da seguinte maneira: Em nome do ibope vale tudo. Esta é a filosofia. Em nome do ibope vale mulher nua, vale cenas de sexo explicito em qualquer que seja o horário, etc. Para bater pontos do ibope vão até as últimas conseqüências ferindo princípios éticos e morais, banalizando a família, destruindo valores morais, tudo isso e muito mais para garantir o ibope.

Esta tem sido também a filosofia da igreja evangélica brasileira. Em nome de templos cheios, em busca de um Recorde em arrecadação financeira em cada culto. Pregadores, pastores e lideres. Em nome da fama, do prestigio. Em nome de uma vida cercada de privilégios, conforto e luxo. Em nome de uma ostentação de poder de “homem de Deus”, de status, de exibicionismo espiritual e exibicionismo econômico, (pois a moda é mostrar quem tem o melhor carro, a melhor mansão. Quem usa os ternos das grifes mais caras do mundo. Quem usa os perfumes mais caros. Quem exibe os relógios mais caros do mundo para desaforadamente ocuparem os púlpitos das igrejas e discursarem a mensagem mais baixa e mais miserável e mais satânica de todos os tempos, dizendo que isto é sinal da benção de Deus e isto é porque Deus esta se agradando destes supostos “profetas de Deus”). Em nome destas vergonhosas atitudes de comportamento e de pregação, vale tudo. Esta tem sido a filosofia da igreja hodierna. Vale mentir, barganhar com Deus, trazer misticismos para os cultos e reuniões. E assim vai indo a igreja. De engano em engano as ovelhinhas de Jesus ameaçada de extinção por lobos cruéis e devoradores que não poupam o rebanho clamam por socorro.


Diante deste quadro a igreja precisa tomar algumas posições. são elas:

1) Denunciar;

2) Criticar;

3) Protestar.


Estas três características estavam presentes na grande maioria das mensagens dos profetas de Deus do antigo testamento.


1) É preciso denunciar esta corrupção generalizada que toma conta da igreja no Brasil. É preciso denunciar que esta mensagem é maligna. Há veneno na panela.


2) É preciso criticar esta obstinação de um povo ingrato que quer relacionar-se com Deus por interesses próprios e não com amor sincero a Deus por aquilo que ele é.


3) É preciso protestar, tomar uma decisão. A igreja precisa dizer: se quereis servir ao deus mamon, todavia nós protestamos porque “eu e minha casa serviremos ao Senhor”.


A igreja precisa ter algumas características:


1- A igreja precisa ser acolhedora;

2- Ter espiritualidade contagiante;

3- Buscar a santidade;

4- Ser contemporânea;

5- Investir em relacionamentos saudáveis;

6- Investir no reino de Deus;

7- Realizar celebrações memoráveis;

8- Pregar mensagens bíblicas, motivadoras e consoladoras;

9- Se envolver com os pobres;

10- Se envolver com missões;

11- Ter mentores;

12- Ministrar as pessoas feridas.

Uma igreja com estas características cumpre-se Jeremias 5.1

“Daí voltas às ruas de Jerusalém, e vede agora, e informai-vos, e buscai pelas suas praças, a ver se achais alguém, ou se há um homem que pratique a justiça ou busque a verdade: e eu lhe perdoarei”.

Por causa da igreja Deus perdoa a cidade.

Lamento não lembrar do autor, mas pense nesta frase:

“DIGA-ME QUAL É A TUA TEOLOGIA QUE EU TE DIREI QUAL SERÁ O TEU ENVOLVIMENTO COM A CIDADE”.


quarta-feira, 2 de junho de 2010

Sentar ao lado de um negro???

Uma mulher branca, de aproximadamente 50 anos, chegou ao seu lugar
na classe econômica e viu que estava ao lado de um passageiro negro.

Visivelmente perturbada, chamou a comissária de bordo.

'Qual o problema, senhora'?, pergunta uma comissária.

'Não está vendo? - respondeu a senhora

- 'vocês me colocaram ao lado de um negro. Não posso ficar aqui.

Você precisa me dar outra cadeira'.

'Por favor, acalme-se - disse a aeromoça -

'infelizmente, todos os lugares estão ocupados.

Porém, vou ver se ainda temos algum disponível'.

A comissária se afasta e volta alguns minutos depois.

'Senhora, como eu disse, não há nenhum outro lugar livre na classe
econômica.
Falei com o comandante e ele confirmou que não temos mais nenhum lugar nem mesmo na classe econômica.

Temos apenas um lugar na primeira classe'. E antes que a mulher fizesse algum comentário, a comissária continua:

'Veja, é incomum que a nossa companhia permita à um passageiro da classe econômica se assentar na primeira classe.

Porém, tendo em vista as circunstâncias, o comandante pensa que seria escandaloso obrigar um passageiro a viajar ao lado de uma pessoa desagradável'.

E, dirigindo-se ao senhor negro, a comissária prosseguiu:

Portanto, senhor, caso queira, por favor, pegue a sua bagagem de mão,
pois reservamos para o senhor um lugar na primeira classe...

'E todos os passageiros próximos, que, estupefatos, assistiam à cena,
começaram a aplaudir, alguns de pé.

Se você é contra o racismo, passe pra frente esta mensagem.

'O que me preocupa não é o grito dos maus.
É o silêncio dos bons.'

Martin Luther King Cruz

Imagem da Hora

Eventos da Prefeitura de São Paulo

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Ed René Kivitz - Me engana que eu gosto

As culturas devem ser lidas nas linhas e entrelinhas. As linhas falam da coisa em si. As entrelinhas falam do espírito da coisa. As entrelinhas podem distorcer e até mesmo destruir o que está dito nas linhas.

Com a cultura cristã não é diferente. Veja o exemplo da assinatura da Igreja Universal do Reino de Deus, a saber, Jesus Cristo é o Senhor. De acordo com o Novo Testamento, isso significa que devemos viver como escravos dos propósitos de Jesus Cristo: ele manda e a gente obedece, ele propõe e a gente executa, ele dirige e a gente segue, pois afinal de contas, Ele é o Senhor. Mas na cultura da IURD, as entrelinhas dessa afirmação fazem com que ela signifique que Jesus pode realizar todos os seus desejos, afinal de contas Ele é o Senhor. A relação fica invertida: você clama e ele responde, você reivindica e ele atende, você pede com fé e ele lhe dá o que foi pedido, você participa da corrente de oração e se submete aos 318 pastores e Jesus faz a sua vida próspera e confortável, pois Jesus Cristo é o Senhor e você é “filho do rei”, de modo que não há qualquer motivo para que você continue nessa vida miserável, daí a segunda convocação da IURD: “para de sofrer”. Percebe como as linhas dizem uma coisa e as entrelinhas dizem outra?

O movimento evangélico é mestre em fazer confusão e promover distorção do Evangelho em virtude desse jogo de linhas e entrelinhas. Um exemplo disso é a mensagem VAI DAR TUDO CERTO, que recebi essa semana.

SALMO 22
VAI DAR TUDO CERTO

DEUS me pediu que te dissesse que tudo irá bem contigo a partir de agora.
Você tem sido destinado para ser uma pessoa vitoriosa e conseguirá todos teus objetivos.
Nos dias que restam deste ano se dissiparão todas as tuas agonias e chegará à vitória.
Esta manhã bati na porta do céu e DEUS me perguntou...
'Filho, que posso fazer por você ?'
Respondi:
'Pai, por favor, protege e bendiz a pessoa que está lendo esta mensagem'.
DEUS sorriu e confirmou: 'Petição concedida'.
Leia em voz baixa...
'Senhor Jesus :
Perdoa meus pecados.
Amo-te muito, te necessito sempre, estás no mais profundo de meu coração, cobre com tua luz preciosa a minha família, minha casa, meu lugar, meu emprego, minhas finanças, meus sonhos, meus projetos e a meus amigos'.
Passe esta oração a 5 pessoas, no mínimo.
Receberás um milagre amanhã.
Não o ignore.

Deus tem visto suas Lutas.
Deus diz que elas estão chegando ao fim.
Uma benção está vindo em sua direção.
Se você crê em Deus, por favor envie esta mensagem para 20 amigos.
Se acredita em Deus envia esta mensagem a 20 pessoas,
se rejeitar lembre Jesus disse:
“se me negas entre os homens, te negarei diante do pai” Dentro de 4 minutos te dirão uma notícia boa

Deixo de lado a crítica gramatical e o péssimo uso da lingua portuguesa. Dedico minha atenção ao conteúdo da mensagem que, travestida de cristã, é absolutamente anti-cristã: mentirosa, fantasiosa, desprovida de qualquer sentido bíblico, desalinhada com o todo do ensino e experiência de Jesus, seus apóstolos, e seus primeiros seguidores, totalmente alinhada com os dircursos baratos da auto-ajuda e da enganação religiosa, enfim, uma versão barata e piedosinha da superstição sincrética do espiritualismo popular.

A afirmação “vai dar tudo certo”, lida de acordo com as linhas do Novo Testamento, significaria, por exemplo, que os propósitos de Deus prevalecerão, a marcha da igreja de Jesus Cristo contra os poderes do mal será vitoriosa, a vontade de Deus será um dia feita na terra como o céu. Mas também significaria que os seguidores de Jesus seriam sempre ovelhas em meio aos lobos [Mateus 10.16], odiados pelo sistema sócio-político-econômico anti reino de Deus, ameaçados de morte, rejeitados, caluniados, e perseguidos por causa do nome de Jesus [Mateus 5.10-12], e passariam por muito sofrimento e tribulação antes de receberam a vitória plena no reino eterno de Deus [Atos 14.22]. Isto é, antes de dar tudo certo, daria tudo errado.

A convicação de que “em Cristo somos mais que vencedores” [Romanos 8.37], e que “em Cristo Deus sempre nos conduz em triunfo” [2Coríntios 2.14], é também acompanhada de uma profunda compreensão a respeito dos custos de se colocar ao lado de Deus e do reino de Deus, em oposição à injustiça e aos agentes promotores e mantenedores da morte no mundo.

Porque me parece que Deus nos colocou a nós, os apóstolos, em último lugar, como condenados à morte. Viemos a ser um espetáculo para o mundo, tanto diante de anjos como de homens. Nós somos loucos por causa de Cristo, mas vocês são sensatos em Cristo! Nós somos fracos, mas vocês são fortes! Vocês são respeitados, mas nós somos desprezados! Até agora estamos passando fome, sede e necessidade de roupas, estamos sendo tratados brutalmente, não temos residência certa e trabalhamos arduamente com nossas próprias mãos. Quando somos amaldiçoados, abençoamos; quando perseguidos, suportamos; quando caluniados, respondemos amavelmente. Até agora nos tornamos a escória da terra, o lixo do mundo.
[1Coríntios 4.9-13]
Fica, portanto, muito evidente que quando os cristãos do Novo Testamento diziam que “vai dar tudo certo” estavam afirmando coisas completamente diferentes dessas afirmadas na mensagem que recebi pela internet, que diz:

Tudo irá bem contigo a partir de agora.

Você tem sido destinado para ser uma pessoa vitoriosa e conseguirá todos teus objetivos.

Nos dias que restam deste ano se dissiparão todas as tuas agonias e chegará à vitória.

Cobre com tua luz preciosa a minha família, minha casa, meu lugar, meu emprego, minhas finanças, meus sonhos, meus projetos e a meus amigos'.

Receberás um milagre amanhã.

Uma benção está vindo em sua direção.

Dentro de 4 minutos te dirão uma notícia boa.

Meu amigo, minha amiga, não é verdade que “tudo irá bem contigo a partir de agora”, e também não é verdade que “você tem sido destinado para ser uma pessoa vitoriosa e conseguirá todos teus objetivos”. Não se iluda, pois não é verdade que “nos dias que restam deste ano se dissiparão todas as tuas agonias e chegará à vitória”. Preste atenção: o compromisso cristão não suplica que Deus cubra com sua luz “minha família, minha casa, meu lugar, meu emprego, minhas finanças, meus sonhos, meus projetos e a meus amigos”. Na verdade, o compromisso cristão exige que você deixe de viver para seus sonhos, seus planos e seus projetos e passe a viver para Deus, pois, como ensina a Bíblia, “o amor de Cristo nos constrange, porque estamos convencidos de que um morreu por todos; logo, todos morreram. E ele morreu por todos para que aqueles que vivem já não vivam mais para si mesmos, mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou“ [2Coríntios 5.14,15], e justamente por isso é que quem deseja seguir a Jesus deve lmebrar o que Jesus disse:

"Se alguém quiser acompanhar-me, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Pois quem quiser salvar a sua vida a perderá, mas quem perder a sua vida por minha causa, a encontrará. Pois, que adiantará ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma? Ou, o que o homem poderá dar em troca de sua alma?” [Mateus 16.24-26]

Também não é verdade que “receberás um milagre amanhã” e que “dentro de quatro minutos te dirão uma notícia boa”.

Pelo amor de Deus, jogue fora esse evangelho açucarado, que promete o que Deus jamais prometeu, e gera falsas esperanças nas pessoas. Respeite o sofrimento e a dor das milhares de pessoas que, apesar de sua fé, e talvez justamente por causa de sua fé, passam fome, não têm mínimas condições de sobrevivência, sofrem as consequências de tragédias pessoais e fatalidades naturais, são vítimas de um sistema mundano cruel, que as condena à escravidão e a uma vida sem futuro. Lembre dos cristãos que vivem na África, na Índia, na América Latina, e nos rincões miseráveis do Brasil. Seja solidário com as minorias: os negros escravizados, as mulheres violentadas, as crianças abusadas, as populações indígenas dizimadas, os refugiados de guerra, os perseguidos políticos, os desaparecidos. Respeite a grandeza dos cristãos perseguidos e mortos sob a tirania do fundamentalismo islâmico e dos regimes políticos ateístas. Pense um pouco se essa mensagem “vai dar tudo certo, todos os seus sonhos se realizarão, você vai receber um milagre amanhã” faz algum sentido na ala infantil do Hospital do Câncer, no campo de refugiados (mutilados) de Angola, ou nos casebres secos do sertão brasileiro.

Construa sua fé sobre um alicerce mais sólido. Por exemplo, o Salmo 22, aviltado com essa mensagenzinha “vai dar tudo certo”. Aliás, é bom lembrar que Bíblia não é um livro que pode ser manuseado por qualquer pessoa, de qualquer jeito. Da mesma maneira que não é qualquer pessoa que pode dar palpite a respeito do direito, de medicina, da engenharia, ou do marketing, também a teologia exige um mínimo de preparo, senão, muito preparo mesmo. Digo isso porque talvez o autor dessa mensagenzinha não saiba que o Salmo 22 é um dos Salmos messiânicos, que profetiza o sofrimento e o fracasso do Messias, que foi (1) abandonado por Deus e pelos homens [Meu Deus! Meu Deus! Por que me abandonaste? Por que estás tão longe de salvar-me, tão longe dos meus gritos de angústia? Meu Deus! Eu clamo de dia, mas não respondes; de noite, e não recebo alívio! Não fiques distante de mim, pois a angústia está perto e não há ninguém que me socorra], (2) rejeitado [Mas eu sou verme, e não homem, motivo de zombaria e objeto de desprezo do povo], (3) insultado [Caçoam de mim todos os que me vêem; balançando a cabeça, lançam insultos contra mim], (4) dilacerado pela dor que lhe foi brutalmente imposta [Como água me derramei, e todos os meus ossos estão desconjuntados. Meu coração se tornou como cera; derreteu-se no meu íntimo. Meu vigor secou-se como um caco de barro, e a minha língua gruda no céu da boca; deixaste-me no pó, à beira da morte. Cães me rodearam! Um bando de homens maus me cercou! Perfuraram minhas mãos e meus pés], e por fim (5) cuspido na cara e crucificado como impostor.

Para esse Messias não deu nada certo. Ele não recebeu uma boa notícia quatro minutos após sua agonia no Getsêmani, e também não recebeu um milagre no dia seguinte. No dia seguinte foi crucificado.

Mas esse Messias, apresentado pelo profeta como “homem de dores, que sabe o que é padecer” [Isaías 53], “Deus exaltou à mais alta posição e lhe deu o nome que está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para a glória de Deus Pai” [Filipenses 2.9-11]. Isso sim é dar tudo certo.


Provavelmente alguém vai dizer que é isso o que a mensagenzinha da internet quis dizer. Mas não foi. Nas linhas, pode ter sido. Mas no contexto da religiosidade popular e da subcultura evangélica, a mensagenzinha sugeriu que “os seus sonhos e os seus projetos” darão certo, e que você pode esperar para amanhã aquela resposta milagrosa de Deus para resolver seus problemas e dificuldades particulares, e que em quatro minutos você vai receber uma notícia boa, muito provavelmente trazendo a você uma benção na forma de conforto e prosperidade.

Em síntese, a mensagenzinha pode ser interessante, pode trazer uma esperança e um conforto para quem está lutando contra um sofrimento ou uma dificuldade medonha, e pode até mesmo trazer um alívio do tipo “eu sei que não é bem assim, mas é bom pensar que é, ou acreditar que pode ser”. Mas definitivamente essa mensagenzinha não tem nada a ver com o Evangelho de Jesus Cristo.


2010 | Ed René Kivitz

terça-feira, 4 de maio de 2010

DÍZIMOS: POR PROSPERIDADE, POR OBEDIÊNCIA, OU POR IGUALDADE?

Introdução:

Este breve estudo sobre o tema dos dízimos surgiu de uma necessidade prática. Na comunidade cristã em que participo temos agido com liberdade rara em relação aos dízimos e ofertas, coisa incomum se compararmos nossa prática com aquilo que vemos nas igrejas de forma geral. Nesta comunidade, cada um ajuda com os compromissos financeiros da forma que pode ou deseja, e não há qualquer exigência aos membros quanto a isso. Porém, tal prática ali, acontece de maneira natural, impensada para muitos. Creio que a maioria das pessoas, que não são muitas, não saberiam explicar a razão para essa maneira diferente de agir, e poderíamos até supor, que alguns ainda sintam-se de alguma forma culpados. Isso seria natural, já que alguns viveram muitos anos ouvindo nas igrejas evangélicas que não entregar dez por cento de seus rendimentos à igreja é roubar a Deus.

Agora, foi-me dada a oportunidade e a responsabilidade de refletir com o grupo sobre isso. Vou ler alguns dos textos bíblicos que mencionam a atitude esperada em relação às finanças do “servo de Deus”, e tentar encontrar nos textos qual a forma mais bíblica de lidar com a questão. Vamos então aos textos, fazendo breves comentários sobre eles e sua intenção original, para que ao final tiremos conclusões adequadas baseadas no conjunto, e não em alguns versículos apenas. Que essa leitura possa dissipar as dúvidas minhas e do leitor, que estando certo ou errado no presente, certamente anseia por guiar sua vida da maneira mais correta possível em relação às escrituras.

1 – Os Dízimos de Malaquias 3.7-12:

Este é o texto mais lembrado quando pensamos a respeito de dízimos. Ele tem sido tão repetido nas igrejas que na verdade ninguém mais o interpreta. Quero dizer que nossa leitura está sempre condicionada pelas muitas apresentações que no passado foram feitas diante de nós. Assim, creio que o grande desafio que temos de enfrentar é o de superar a tradição, as pré-concepções que até o momento parecem ser a maneira segura de interpretar o texto.

Vamos lê-lo em uma versão bem tradicional, de João Ferreira de Almeida, e ver o que ele diz. Mas temos de ter o cuidado de ler a unidade textual inteira, e não apenas o versículo 10, como se costuma fazer:

(7) Desde os dias de vossos pais, vos desviastes dos meus estatutos e não os guardastes; tornai vós para mim, e eu tornarei para vós, diz o SENHOR dos Exércitos; mas vós dizeis: Em que havemos de tornar? (8) Roubará o homem a Deus? Todavia, vós me roubais e dizeis: Em que te roubamos? Nos dízimos e nas ofertas alçadas. (9) Com maldição sois amaldiçoados, porque me roubais a mim, vós, toda a nação. (10) Trazei todos os dízimos à casa do tesouro, para que haja mantimento na minha casa, e depois fazei prova de mim, diz o SENHOR dos Exércitos, se eu não vos abrir as janelas do céu e não derramar sobre vós uma bênção tal, que dela vos advenha a maior abastança. (11) E, por causa de vós, repreenderei o devorador, para que não vos consuma o fruto da terra; e a vide no campo não vos será estéril, diz o SENHOR dos Exércitos. (12) E todas as nações vos chamarão bem-aventurados; porque vós sereis uma terra deleitosa, diz o SENHOR dos Exércitos”

Bem, para começar temos que entender que o texto trata de um problema religioso e econômico, coisas que na antiguidade não podiam ser consideradas separadamente como hoje fazemos. Todos os problemas, fossem eles econômicos, militares, de saúde, ou o que for, eram encarados como problemas também religiosos. Vejo então, que no período em que o texto foi escrito havia um problema sério com o qual o povo estava lidando, a saber, a pobreza e a fome decorrente.

O problema do povo para o qual o texto se destinava era a fome, mas o nosso é que toda a solução oferecida para a solução da fome é-nos extremamente antiquada. Como era costume na antiguidade, os homens sacrificavam animais às divindades para que seu deus mandasse chuva, para fizesse frutífera as plantações na temporada, e é disso que se trata em Malaquias 3.7-10. Esse derramamento de sangue animal como solução aos problemas sociais parece-me uma proposta equivocada.

Vamos por parte. Primeiro, no v. 7, o povo é acusado de não seguir a religião dos antepassados. Essa é a explicação dada para a situação difícil que enfrentavam, mas ignorante, esse povo nem sabe em que tem errado. O autor, falando em nome de Deus, se propõe a ensiná-los. Dos versículos 8 a 9 o suposto “pecado” é claramente exposto: eles não mais levavam seus dízimos e ofertas à casa do Senhor. Para entender isso melhor temos que voltar um pouco no tempo.

O texto em questão foi escrito provavelmente em meados do século V a.C. Após o retorno do exílio babilônico, o povo de Judá se propôs a reconstruir suas cidades e o Templo de Jerusalém. A obra foi feita por iniciativa popular, e a construção foi terminada, teve ainda dificuldades de se estabelecer como centro da religiosidade popular. Aconteceu que desde os últimos sacrifícios feitos no Templo antes do exílio tinham-se passado mais de um século, e esta geração sabia muito pouco sobre aquela antiga religiosidade baseada em sacerdotes. Consequentemente, a reinauguração do Templo deve ter decepcionado seus construtores. O número de sacrifícios e peregrinações não era o esperado, e as pessoas que viviam dos ofícios religiosos notaram que não sobreviveriam assim, sem a adesão nacional. Começou então a campanha, da qual Malaquias 3.7-10 faz parte, para a revitalização da religião do Templo.

Temos então, neste texto, uma propaganda sacerdotal, um chamado para a volta à religião dos antepassados que dá ênfase nos sacrifícios como forma de apazigua a divindade e obter boas colheitas. Porém, é curioso que essa propaganda não coincida com a principal função para a qual os sacrifícios do Templo foram criados, que é o perdão de pecados. Quero dizer que a função de perdoar pecados, fundamental na trajetória do Templo de Jerusalém, é ignorada nesse texto, e o apelo limita-se à solução da fome. Por isso nos v. 10 e 11 a recompensa pelos dízimos e ofertas não é a remissão, mas a colheita farta. Foi isso o que me fez supor que o problema mais premente daquela geração era a fome.

O autor do texto obviamente pertence à linha sacerdotal, e pedia que pessoas já empobrecidas ainda abrissem mão de parte do seu sustento para investirem no sistema religioso do Templo. Mas em nenhum momento podemos afirmar que esse autor sacerdote queria aproveitar-se da fé das pessoas para benefício próprio. Mesmo sabendo que os sacerdotes viveriam também desse investimento feito no Templo, a fé desse autor sempre respondia com sacrifícios aos problemas da sociedade. Na sua religião, ter alimento no Templo era o primeiro passo para que houvesse alimento nas aldeias, e ele facilmente relacionou a escassez do Templo com a escassez das fazendas. Como eu disse antes, essa é uma religiosidade antiga, ultrapassada, pois não acreditamos mais que sangue de animais agrada a Deus e que é preciso tais sacrifícios para que a terra produza. A produtividade dos nossos campos hoje depende de trabalho, tecnologia, e um pouco de sorte.

Agora, alguns problemas hermenêuticos. Se o texto traz uma proposta religiosa absolutamente obsoleta, por que ele é tão popular nas igrejas? Como os leitores de fé se apoderam dele fazendo-o determinante ainda hoje? Para mim, essa atualização é feita através da substituição arbitrária de elementos originais do texto por outros que nos interessam. Veja:

Nós brasileiros não somos, com algumas exceções, os judeus aos quais o texto se dirige; somos os gentios que aparecem no versículo 12 como aqueles que assistiriam a prosperidade de Judá após a revitalização do Templo. Assim, para sermos honestos, o apelo não foi dirigido a nós, embora seja esse tipo de apropriação do texto uma prática bastante comum e até aceitável pela fé. O outro problema é a “casa do tesouro”, para onde devem ir os dízimos e ofertas. Hoje toda igreja sente-se apta para isso, mas sem dúvida quem escreveu o texto discordaria dessa opinião. Na verdade, todas as ofertas e dízimos deveriam ser oferecidas no Templo de Jerusalém, e a extinção de tal Templo, mesmo para os judeus, impede a aplicação desse texto de maneira precisa. Quem diz que a casa do tesouro agora é sua igreja, obviamente está aproveitando-se do texto. Temos ainda a questão da fome. O texto procura solucionar um problema econômico nacional, e não fazer enriquecer aqueles que seguirem suas instruções, como hoje muitos acreditam.

Eu acho que se há algo que realmente poderia ser aplicado aos nossos dias a partir desse texto é que nossa fé ou práticas religiosas precisam estar voltadas principalmente para a solução da fome. Isto é, todos têm direito ao mínimo necessário para uma sobrevivência digna, humana, e é absolutamente válido chamar os homens e mulheres de fé para contribuir na solução de tal problema. A falta de comida, roupa, moradia, saúde, sempre esteve presente na história da humanidade; e a fé bíblica, como vemos a partir de Malaquias, sempre colocou essa escassez desumana em pauta. Nós é que escolhemos apenas a parte do dízimo e esquecemos sua verdadeira aplicação. No entanto, quando hoje aplicamos nossa fé na solução das crises da humanidade, não precisamos mais fazê-lo de maneira mística, pensando que sacrifícios proporcionam riquezas e paz. Agora, o que Deus requer é comprometimento com o princípio eterno e universal do amor ao próximo.

2 – Os Dízimos de Deuteronômio 14.22-29:

Posso imaginar e compreender que alguns leitores discordem das coisas que eu disse acima. Realmente, não é porque escrevi algumas páginas com uma nova proposta de interpretação que todos conseguirão abrir mão de leituras mais antigas e tradicionais, que lhes foram transmitidas por verdadeiras “autoridades espirituais”. Mas minhas conclusões sobre os dízimos e ofertas na Bíblia não se baseiam somente na minha interpretação de Malaquias; há outros textos que podem ser empregados nessa discussão, dos quais, um deles é Deuteronômio 14.22-29, que também fala sobre dízimos e que surpreendentemente é ignorado pela grande maioria dos líderes religiosos de hoje. Vamos primeiro ler o texto:

(22) Certamente darás os dízimos de toda a novidade da tua semente, que cada ano se recolher do campo. (23) E, perante o SENHOR, teu Deus, no lugar que escolher para ali fazer habitar o seu nome, comerás os dízimos do teu cereal, do teu mosto, do teu azeite e os primogênitos das tuas vacas e das tuas ovelhas; para que aprendas a temer ao SENHOR, teu Deus, todos os dias. (24) E, quando o caminho te for tão comprido, que os não possas levar, por estar longe de ti o lugar que escolher o SENHOR, teu Deus, para ali pôr o seu nome, quando o SENHOR, teu Deus, te tiver abençoado, (25) então, vende-os, e ata o dinheiro na tua mão, e vai ao lugar que escolher o SENHOR, teu Deus. (26) E aquele dinheiro darás por tudo o que deseja a tua alma, por vacas, e por ovelhas, e por vinho, e por bebida forte, e por tudo o que te pedir a tua alma; come-o ali perante o SENHOR, teu Deus, e alegra-te, tu e a tua casa; (27) porém não desampararás o levita que está dentro das tuas portas; pois não tem parte nem herança contigo. (28) Ao fim de três anos, tirarás todos os dízimos da tua novidade no mesmo ano e os recolherás nas tuas portas. (29) Então, virá o levita (pois nem parte nem herança tem contigo), e o estrangeiro, e o órfão, e a viúva, que estão dentro das tuas portas, e comerão, e fartar-se-ão, para que o SENHOR, teu Deus, te abençoe em toda a obra das tuas mãos, que fizeres.

Eis aí sob nossos narizes um texto bíblicos que oferece mandamentos sobre dízimos e que é bastante diferentes de Malaquias. Neste caso, não temos uma interpretação tradicional que condiciona nossa leitura, antes, a grande maioria dos cristãos nem mesmo o conhece. Quero comentá-lo brevemente, e o leitor deve vez ou outra voltar ao texto bíblico para confirmar se o que digo é coerente.

Primeiro, lendo o texto dos versículos 22 a 26 o que vejo é uma festa religiosa. Trata-se como antes, de um texto escrito para camponeses, que plantam e criam animais para sobreviver. Eles são chamados a investir numa festa religiosa que seria feita também no Templo de Jerusalém, o lugar que Deus iria escolher. Importante mesmo é que o dízimo de tudo deveria ler levado e comido durante a festa por toda a família. Não há entrega a sacerdotes, não há patrocínio ao Templo, mas a dedicação de uma porção da produção agrícola que é investida numa festa de comunhão e refeição comunitária.

O verso 27 fala do cuidado com os levitas. Como todos eram agricultores e tinham recebido parte da terra por herança, tinham que ajudar os levitas, que serviam religiosamente nas as aldeias e que por decreto divino não possuíam propriedades nem herança. Não tendo como plantar, eles não tinham o que comer, e era correto que a partir desse acordo nacional todos se unissem para ajudá-los. Assim, os dízimos serviam para celebrar a Deus pela produção do último ano de trabalho, para reunir a família e o povo todo em comunhão de mesa, e para não permitir que os levitas vivessem miseravelmente por causa da sua vocação.

Curioso hoje é que eles podiam administrar tal celebração por conta própria, comendo e bebendo o que desejassem. Assim, o dízimo era uma instrução que estava por conta de cada chefe de família, e o Templo ou o Estado não intervinham em sua prática.

Do v. 28 em diante o texto sofre algumas mudanças, sua redação é outra. Diz que ao final de três anos os dízimos não serão usados para a festa religiosa familiar, mas exclusivamente em boas obras para com os mais necessitados da nação. Nesta ocasião, deve-se levar o dízimo para a porta da cidade e deixar que os levitas, os órfãos, as viúvas e os estrangeiros comam até fartar-se. Nesse caso, o dízimo serve para suprir a carência das pessoas necessitadas da sua localidade. A recompensa por tal dedicação (v. 29b) é que Deus abençoa quem assim procede, fazendo prosperar as obras das tuas mãos.

Outra vez, segundo a religiosidade antiga quem agrada a Deus garante a boa colheita no ano seguinte, mas aqui não é por se queimar animais sobre um altar que se agrada a Deus. Aqui não há sacrifícios no Templo, todo o investimento é usado para solucionar a desigualdade social e fortalecer a tradição religiosa nacional. Novamente é a fé e a comida dos pobres que está em jogo. Os levitas não são prósperos, são também tão dependentes como os órfãos e as viúvas, e espera-se que em nenhuma aldeia haja pessoas morrendo de fome.

Desta vez o autor não é da estirpe sacerdotal, mas é um levita. Ele se preocupa com a celebração a Deus, com a ajuda aos pobres, e com a sobrevivência de sua própria família. O problema não é a interpretação que se faz desse texto, mas a completa falta de leitura do mesmo. Então, pergunto o que o leitor já deve estar se perguntando: Por que nas igrejas evangélicas de hoje somente Malaquias é lido? Na verdade, Malaquias é lido, porém, mal interpretado. Deuteronômio 14 não dá tanta margem para que se interprete o texto para benefício de instituições religiosas e líderes, motivo pelo qual, é um texto desconhecido da maioria. Lê-lo e comprometer-se com ele nas igrejas de hoje provocaria uma revolução na maneira de se praticar obras sociais.

Tire então suas próprias conclusões: É correto dizer que o cristão não pode administrar seu dízimo? Será que se eu levasse meu dízimo para uma instituição de caridade e não para a igreja, eu estaria roubando a Deus? Mas não vemos nos dois textos que a preocupação central é a fome, a desigualdade, a desumanidade? Para mim, tudo o que se diz atualmente nas igrejas sobre dízimo é, ou uma 1) má interpretação motivada pela tradição e falta de cultura bíblica do povo e de seus líderes, ou 2) completa manipulação interesseira do texto e da fé simplória do povo.

Mas ainda não acabei. Quero falar rapidamente de uma outra passagem bíblica, desta vez do Novo Testamento, para vermos como a oferta a Deus, também para Jesus, nunca é o caminho para a prosperidade de alguns, mas para a igualdade de todos.

3 – Nem Pobreza nem Prosperidade, Jesus quer Igualdade (Marcos 10.29-30):

Lendo o capítulo 10 de Marcos vemos que um jovem rico havia procurado Jesus. Ele seguia os mandamentos da Torá como bom fariseu, mas queria ser completo, e Jesus lhe diz que para isso era-lhe necessário vender tudo o que tinha, dar aos pobres, e segui-lo. Sabemos da história, e sabemos que o jovem não seguiu Jesus porque tinha muitas riquezas. Depois que o jovem deixa-o, Jesus aproveita a ocasião para dizer aos seus discípulos como as riquezas impedem o homem de entrar no Reino de Deus. Ficamos com a impressão de que o desejo de Jesus é que todos façam um voto de pobreza, mas isso também é um erro. Aí entra Pedro, pensando que por ter deixado tudo por Jesus irá se dar muito bem conforme o Reino irrompia. Vamos agora ver isso lendo o texto bíblico:

“(28) E Pedro começou a dizer-lhe: Eis que nós tudo deixamos e te seguimos. (29) E Jesus, respondendo, disse: Em verdade vos digo que ninguém há, que tenha deixado casa, ou irmãos, ou irmãs, ou pai, ou mãe, ou mulher, ou filhos, ou campos, por amor de mim e do evangelho, (30) que não receba cem vezes tanto, já neste tempo, em casas, e irmãos, e irmãs, e mães, e filhos, e campos, com perseguições, e, no século futuro, a vida eterna”

Agora vemos que a ação de Pedro ao deixar tudo e seguir Jesus é aprovada. Ele iria receber cem vezes mais nesse tempo, além da vida eterna; além, é claro, de perseguições. Então concluímos que temos que ser “mão aberta”, dar muito para receber muito, e a caridade é vista como um meio de ficar ainda mais rico. Novamente estamos enganados.

Na verdade, o Reino de Deus para Jesus tinha uma aplicação escatológica, ou seja, para o fim dos tempos, e outra para a vida aqui, na prática e no presente. Abrir mão de todos os bens significava fazer caridade, ajudar aqueles que já faziam parte do movimento do Reino e que não tinham mais o que comer. Imagino que as coisas funcionavam assim: Ao entrar no movimento do Reino você era convidado a doar seus bens à comunidade, ajudar os mais pobres, e assim, você mesmo não seria pobre, já que teria também o direito de possuir tudo o que a comunidade possuía. Por isso, Jesus diz que em vez de uma casa, você teria várias. Se um dia você não tivesse onde dormir, no movimento do Reino você seria acolhido por cem; se não tivesse quem o ajudasse, no movimento do Reino teria irmãos prontos a ajudar; se não houvesse uma família para o consolar, no movimento sempre haveria muitas mães que poderiam fazê-lo.

Assim, o convite para vender os bens, dar aos pobres e seguir Jesus, não era um convite à pobreza, mais um convite à comunhão plena na comunidade. Doando tudo você ajudava na solução da pobreza, na igualdade social entre membros, e recebia a garantia de sobrevivência a partir dessa mesma vida em comum. A promessa de receber cem vezes mais nesse tempo não quer dizer ficar rico, mas ter sempre o necessário para suprir suas necessidades. Ou seja, o objetivo de Jesus é oferecer a todos os seguidores uma vida digna, onde os mais ricos não são egoístas e os mais pobres não passam fome. Isso coincide com a proposta dos textos que lemos do Antigo Testamento, cujo objetivo é solucionar as injustiças através da união de um povo de fé, empenhado em construir uma sociedade melhor. Contudo, Jesus é mais radical e espera que o seguidor invista tudo, e não apenas do dízimo.

Notemos que além de oferecer vida eterna, Jesus veio para oferecer uma proposta de vida mais humana. Como me ensinou meu professor, o Dr. Paulo R. Garcia, no Reino de Deus, tanto quem já era rico e investiu muito na comunidade, quanto quem não tinha muito e pouco doou, no final do dia recebem o salário necessário para as suas necessidades (Mt 20.1-16); todos têm direito ao mesmo denário. Não trata-se de injustiça com aqueles que muito deram, mas de igualdade. Neste ponto, acredito que as instituições religiosas de hoje deixam muito a desejar.

Conclusão

Após lermos três textos, a que conclusão chegamos? Relemos três textos bíblicos, que foram escritos com um intervalo de séculos entre eles, e que sem dúvida apresentam propostas de fé e prática divergentes. Temos que escolher apenas um deles e descartar o resto? Malaquias deve continuar sendo o texto preferido para se falar da vida econômica dos cristãos?

Acho que nesse caso, as divergências entre textos sagrados devem ser ignoradas. Ou seja, se um orienta a sacrificar, o outro a patrocinar uma festa e fazer caridade na comunidade local, e o outro a doar tudo à comunidade e viver em comunhão plena de bens, penso que nenhuma dessas coisas é realmente imprescindível. Os desacordos nos mostram como eles tentaram, mas não nos dá uma proposta definitiva. Por outro lado, as convergências devem ser aproveitadas, pois esses talvez sejam os elementos inspirados dos textos, que os fizeram compor um único livro no final. Assim, temos a devoção religiosa e o comprometimento social como únicos mandamentos reais.

Hoje, as igrejas até podem solicitar dos seus membros dízimos, ofertas, e isso em si não é o problema. As questões são: A Bíblia realmente apóia os estatutos econômicos adotados pelas igrejas de hoje? Onde esse dinheiro é investido de verdade? Por que eles fazem segredo sobre o destino do nosso investimento? Qual a real motivação para tal exigência financeira, que inclusive é feita sob ameaças de condenação e acusações de roubo? Infelizmente, fala-se de manutenção de prédios, não de obras sociais, não de amenizar o problema da fome, não de investimento em educação em comunidades carentes.

Pior, a igreja não procura em nada fazer com que a consciência gananciosa dos homens de nossos dias mude; não existe nenhuma iniciativa no discurso religioso sobre dízimos que esteja voltada para transformar a vida das pessoas nesse aspecto, em fazer com que dentro dessas comunidades todos vivam dignamente. Assim, a obrigação dos membros é só dar, não decidir, não acompanhar, não julgar o que se faz com o dinheiro. Isso, ainda que não implique em desonestidade, nada acrescenta às pessoas e à sociedade. Continuam todos em suas buscas desenfreadas por cada vez mais e mais dinheiro, gastando com coisas desnecessárias, preocupando-se só consigo mesmos. A cobrança dos dízimos, então, é até prejudicial, serve para consolar nossa consciência, pois ao doá-lo achamos que já fizemos nossa parte e cruzamos os braços esperando pelo governo para a solução das crises humanas.

Para terminar, deixe-me dizer que não acho que um socialismo seja a solução para os nossos problemas. Mas independente da estratégia, nossa consciência deve ser transformada a cada dia. O Reino de Deus não se resume à vida eterna, mas também à vida digna nesta terra, para todos. Quem quer servir a Deus não pode, definitivamente, acumular riquezas enquanto vê seu irmão passando fome. Porém, se é consenso que todos temos que investir, fica em aberto a estratégia para que tais investimentos colaborem com a melhoria das condições de vida dos filhos de Deus em todas as partes.

Discursar sobre tais coisas, definitivamente, não é meu “forte”. Prefiro que minha contribuição ao leitor seja minha proposta de interpretação do texto bíblico, deixando que cada um faça com sua fé bíblica o que achar mais correto.

Sobre o Autor

terça-feira, 23 de março de 2010

A irremediável burguesia religiosa. Ricardo Gondim

Gosto muito dos texto do Ricardo Gondim. Hora tenho a impressão de estar lendo minha história, hora parece-me que o próprio Deus esta a me falar. Leiam vale a pena... A não ser que queiras ler com as lentes da religião.
Nilson Gomes

Texto de Ricardo Gondim

Se não me falha a memória, a frase é do Cazuza. “A burguesia fede, mas tem os seus encantos”. Pela classificação mais ordinária dos cidadãos brasileiros, nasci na classe “C”, isto é, no andar de baixo desta burguesia. Designado para viajar nos vagões mal cheiroso que ficam atrás do trem, minha infância não teve tantos mimos. Cresci sem automóvel (eu tinha 17 anos quando papai comprou um carro), sem frequentar lanchonete nos fins de semana e sem vestir roupa de grife. Não, nunca fomos pobres; tínhamos segurança alimentar e uma grande família com tios que chegaram junto na hora do sufoco.

Mas, para entrar no baile de adolescente na vesperal do Clube Náutico, eu precisava pular o muro; para chupar um picolé no intervalo da aula, tinha que ir para o colégio a pé e para comer maçã, adoecer.

Tornei-me um militante do patético alpinismo social. Em meu primeiro emprego, fixei a meta de comprar um fusca. Trabalhei como um remador de galé, mas um ano depois saí da loja montado nas quatro rodas alemãs - e mais trinta e seis prestações. Daí para a frente, continuei subindo. Cheguei ao mundo colorido da classe “B”. Eu já não era um remediado pobretão. Cedo, também notei que as escadas religiosas poderiam me conduzir a patamares mais elevados.

Gastei a maior parte dos meus dias entre cristãos que faziam da religião o trampolim social que a sociedade lhes negava. Eu sabia que a lógica religiosa que eu aceitava de bom grado, e fortalecia, servia às aspirações de pequenos ricos.

Primeiro, nos Estados Unidos. Viajei extensivamente por quase todo o território e conheci a América profunda. Preguei tanto em igrejas grandes como em bibocas. Evitei, por interesse, notar como os pentecostais se esforçavam para mostrar que não eram os primos pobres de batistas e presbiterianos. Por duas vezes, participei do Concílio Geral das Assembleias de Deus. Não há como descrever o desfile das vaidades que vi nessas reuniões. Pelos corredores lotados com mais de quinze mil pastores, mulheres borradas de maquiagem ostentavam roupas caras e os maridos batalhavam para ganhar a placa de “Maior Contribuinte de Missões Mundiais ”.

Depois que voltei ao Brasil, também procurei cegar para o que via. Eu não queria notar como líderes denominacionais usavam de toscas manipulações para se manterem temidos como caudilhos. Pastores oriundos das mesmas camadas sociais que eu, se sentiam desafiados a passar pelo malho apertado da peneira social. Alguns, logo revelavam sinais exteriores de riqueza, fama, glória. Isso lhes motivava à luta e eu, confesso, queria ser como um deles. Os ungidos apareciam ao lado de políticos famosos, viajavam para Israel, abriam postos missionários além-mar.

Paulatinamente, distanciei-me desse mundo que passou a imprimir cartão de visita com o titulo de Apóstolo. Depois, com as mega-empresas religiosas, quando o cacife cresceu, e eu decidi sair de vez. Os verdadeiramente ungidos passaram a desfilar de BMW, helicóptero e jatinho. Resolvi não desejar esses brinquedinhos que patenteiam a bênção de Deus.

O mundo evangélico está contaminado por esta espiritualidade pequeno-burguesa. Animado pela lógica de que servir a Deus é proveitoso, o crente parte em busca do macete que abre porta de emprego, faz passar no vestibular, resolve causas na justiça, ajuda nos concursos públicos e aumenta salário. Para ele, a prova de que Deus existe está nesses pequenos milagres; e o melhor testemunho da verdade da fé, na capacidade de mover o braço do Todo-Poderoso.

Quase fui linchado quando afirmei, em um estudo bíblico, que Deus não abre porta de emprego.Sofri crítica por dizer, baseado no Sermão da Montanha, que Jesus ensinou aos filhos de Deus a não pedirem coisas materiais. A princípio, não entendi a reação virulenta. Por que tamanha resistência à proposta de espiritualidade que abre mão das intervenções divinas para se dar bem na vida? Mas, quanto mais eu lembro das ambições que povoaram o meu coração juvenil, dos corredores enfatuados daquelas convenções americanas e da breguice dos evangelistas novos-ricos, reconheço: não se desvencilha com facilidade das orações milagrosas que prometem os encantos da burguesia, sem feder.

Ricardo Gondim

Soli Deo Gloria
22-03-10

segunda-feira, 15 de março de 2010

NÃO ACHO QUE DEVEM CONCORDAR COMIGO...

Parece que minhas pregações começaram a incomodar. Ouço alguns rumores. Já ouço dizer que estou "despregando" o que outros pregam. Alguns, inclusive, parece-me irritados com minhas pregações, pra não dizer que chego a perceber alguns com seus rostos até endurecidos durante as mensagens. Por que? Será que é porque a teologia da prosperidade não se encaixa em nada nas minhas pregações? Sou um opositor declarado dessa doutrina e não consigo encarar o evangelho da autoajuda como sendo o Evangelho de Jesus. Denuncio os esquemas e as técnicas que muitos usam para usurpar a igreja, e prego que pentecostalismo não tem nada a ver com esses espetáculos que alguns pregadores inescrupulosos andam dando em cima dos púlpitos das igrejas evangélicas brasileiras. São verdadeiros atores. Exibem uma falsa espiritualidade a fim de impressionarem a igreja, e querem mostrar um nível mais elevado de santidade. Aliás, qual santidade? Mas tudo bem. Ninguém precisa concordar comigo, porém não podem dizer que fui inescrupuloso ou pretensioso. E como diz Ricardo Gondim, que é na minha opinião um dos maiores pensadores cristão da atualidade,"Não preciso tornar-me querido para receber convites para pregar em lugar algum". Portanto, fica aqui a minha declaração: Não abro mão dos valores do reino. Não aceito o evangelho da barganha. Não quero fazer parte dos esquemas - e vou denunciá-los sempre que houver oportunidade. Tenho nojo da doutrina da prosperidade e não creio no evangelho da prosperidade, mas creio na prosperidade do evangelho. Minha mensagem é a Cruz. Prego Jesus e sua volta iminente, prego o Espírito Santo, quero falar que Deus é a verdadeira revelação entre os homens através de Jesus Cristo, enfim, quero pregar a PALAVRA, só a PALAVRA.
Quanto aos que não concordam favor não me convidar.

Nilson Gomes

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Meu pentecostalismos revisitado- texto de Elienai Cabral Junior.

Acho que este texto do Elienai Cabral Jr. tem tudo a ver com minhas inquietações e minhas dúvidas desse pentecostalismo, que não se parece nada com o pentecostalismo biblico. Vale apena conferir.


Sou a terceira geração de pastores em minha família. Meu avô materno, hoje jubilado, é pastor da Assembléia de Deus no interior do Rio de Janeiro. Meu avô paterno, já falecido, pregou sua última mensagem (“A que vieste?”) na Assembléia de Deus em Curitiba, onde encerrou sua trajetória ministerial, a três dias de sua partida para o Senhor. Ambos marcaram seus ministérios com uma pregação consistente, criativa e antecedida de pesquisa e elaboração textual. Do meu avô materno, José Carlos Lessa, carrego a impressão de uma pregação professoral e cartesiana. Do meu avô paterno, Osmar Cabral, sua eloqüência e paixão, que o levaram aos ‘pulinhos’ empolgados, foram traços que não o impediram de pregar com gravidade e conteúdo.

Meu pai é pastor no Distrito Federal. Não o conheci em outro ofício senão o do púlpito. Quando nasci, meu pai já viajava o Brasil pregando e promovendo as famosas ‘cruzadas evangelísticas’, “Cruzadas Boas Novas”, protagonizadas pelo Evangelista Bernardo Johnson Jr. À frente da geração anterior, tanto quanto da sua própria, cursou teologia. Escreveu livros, e ainda o faz. Tornou-se uma referência da teologia assembleiana no Brasil. Conseguiu reunir a eloqüência, elaboração intelectual e a criatividade em sua produção pessoal. Seu escritório é uma escandalosa biblioteca.

Minha mãe, não poderia deixar de incluir sua presença influente em minha história de pentecostalismo, imprimiu em mim a obsessão pela coerência, um criticismo agudo e insistente, o gosto pela língua bem falada e escrita e uma leitura da fé sem os moldes da teologia sistemática.

Curiosamente, a presença dos livros e a pregação antecedida de pesquisa e elaboração foram parceiras das experiências do tipo pentecostal. Este ambiente de reflexão e espírito inventivo, inusitado para o pentecostalismo, tão intuitivo e passional, não prescindiu das mais legítimas manifestações carismáticas. Cresci ao som de línguas estranhas, promessas derramadas em nossa família por profecias do tipo “Eu, o Senhor teu Deus, falo contigo...”, curas físicas, milagres financeiros, cultos graves e intensos, de tão gloriosa presença do Espírito Santo. Como esquecer o dia em que depois de comer pão coberto com banha de porco e açúcar, por absoluta falta de alternativas, fomos surpreendidos por um amigo da família carregando compras para dentro de casa, porque Deus falara ao seu coração? Como perder a memória da reunião de mulheres na casa de alguém, em que fui batizado com o Espírito Santo, falando em línguas pela primeira vez aos nove anos de idade? Carrego o legado pentecostal nas minhas lembranças de como Deus tornou-se conhecido para mim.

Entrei em contato com o pensamento teológico organizado através dos diversos seminários, que duravam uma semana, ministrados pelo meu pai em seu Ministério Cristocêntrico: As Setenta Semanas de Daniel, O Apocalipse, Carta aos Romanos, A Juventude Cristã e o Sexo. O Batismo com o Espírito Santo e os Dons Espirituais e outras dezenas. Ajudava na organização, inscrições, distribuição de apostilas, certificados. Mas o que gostava mesmo era de sentar entre os participantes, caneta na mão, apostila, Bíblia e uma mente adolescente deslumbrada com a sabedoria do pai e a grandeza de tudo o que ouvia (‘Como pode caber tanta coisa na cabeça de um homem só?!’)

Junto a tudo isso, o ardor evangelístico. Ninguém pedia, mas aos sete e oito anos de idade distribuía folhetos na rua em frente ao prédio onde morávamos em São Vicente, litoral paulista. Um monte de gente passava por ali em certo dia da semana, em direção à feira livre da rua vizinha. Carrego uma memória preciosa do dia em que “ganhei a minha primeira alma para Jesus!” Foi o que gritei quando entrei em casa exigindo que minha mãe me desse uma daqueles livros que se dava para um recém convertido. Do livro não esqueço, nem do título e do autor, De Coração para Coração de Alcebíades Vasconcelos. Desci a escadaria correndo, livro na mão, coração quase saindo pela boca, lágrimas nos olhos. Entreguei o livro e o endereço da igreja na mão do rapaz. Não me pergunte por ele. Nunca mais o vi. Mas ali, de uma forma linda, Deus forjava em um menino o ímpeto pastoral.

Tive um amigo do qual não consigo esquecer. Natanael Rinaldi, um homem apaixonado por vidas e evangelismo. Imagino que ele deveria ter na época mais de quarenta anos de idade. Três vezes na semana, terça, quinta e domingo, à tarde, buscava-me no mesmo endereço que acabei de relatar. Íamos para cultos ao ar livre, hospitais, orfanatos, casas, ruelas. Bíblia de baixo do braço, um maço de folhetos na mão e os olhos dilatados pelo deslumbre de ser um evangelista. A primeira vez de um pregador ninguém esquece. Meu querido amigo avisou-me que eu “daria uma ‘palavra” no culto ao ar livre. Não lembro do que falei. Mas já tinha aprendido com meu pai a andar sempre preparado para uma oportunidade. O que não consigo esquecer é a minha alegria ao dar a notícia ao meu pai de que tinha pregado pela primeira vez. Em seguida, tornei-me um “pregador mirim”. Aonde meu pai fosse pregar, arrumava um jeitinho de “dar uma palavrinha”. A imagem da igreja “em chamas” encantou-me. A vozinha esganiçada de menino vociferava jargões inflamados. Davam-me três minutos e o “fogo” estava atiçado. Cheguei a acreditar que eu fosse realmente muito bom. Mas bom mesmo era aquele povo apaixonado por qualquer expressão mínima de fé.

Subi morros em Niterói, cidade do Estado do Rio de Janeiro. Vi gente possessa por demônios bolar no chão poeirento das clareiras entre os barracos de favelas. Gente opressa por demônios (e por gente, hoje eu sei). Lembro de, aos nove ou dez anos, ter uma mulher diante de mim, depois de rolar de dentro do seu barraco até o centro da roda do culto onde estávamos cantando e pregando, estrebuchando aos berros. Com medo, mas devidamente treinado por tudo o que já tinha visto, baixei com as mãozinhas sobre a sua cabeça e, junto com todos os outros, berrei a ordem de expulsão dos espíritos que ali estavam.

Em minha adolescência, assisti a muitas transformações do ambiente pentecostal. Muitas tradições começaram a ruir, principalmente as estéticas. As mulheres agradeceram. Roupas, cabelos e adereços sofreram as mudanças inexoráveis do mundo moderno. Apesar de ainda hoje encontrarmos guetos de resistência.
A estética do culto também mudou, por pressão de uma juventude ansiosa por se expressar. Igrejas pentecostais novas surgiram. Empolguei-me quando descobri uma tal de Assembléia de Deus Betesda em Fortaleza, Ceará. Tirou-me o fôlego, aos quinze anos, depois de um culto pontuado por uma exposição densa da Bíblia e muito quebrantamento, acompanhar os jovens da igreja à beira-mar, onde tomamos sorvete, cantamos louvores em roda na areia da praia e evangelizamos todos os que pudemos. Redescobri o prazer do culto, aprendi a ler com paixão a Bíblia, a orar com freqüência com jovens vindos das drogas e de uma sexualidade pervertida para o Senhor Jesus. “Dancei no espírito”. Freqüentei acampamentos. Participei de “louvorzões”. Escandalizei os mais velhos. Mas continuei junto com tantos outros dentro da igreja. Um pentecostalismo já mudado emergiu em minha geração.

Hoje, sou pastor de uma dessas tantas ‘Betesdas’ espalhadas pelo Brasil. Além de cursar Teologia no mesmo seminário que meu pai(apesar de minha passagem ser marcada por algumas convulsões de comportamento e teologia), formei-me em Filosofia. Mantive o gosto pela leitura que aprendi em casa. Bebo freqüentemente das memórias deixadas por meus avós e pais. Mas pastoreio uma igreja distinta da igreja que eles pastorearam. Meu mundo mudou assustadoramente. E o pentecostalismo também.

Convivo com irmãos que experimentaram o que eu também experimentei no passado. Muitos vivem vergados de culpa. Tentam explicar porque não vivenciamos o fervor de outrora. Porque os dons não se mostram como antes. Nossos cultos tornaram-se diferentes em todos os sentidos. No entanto, não consigo sentir-me nem culpado e nem participante de algo inferior. Apenas vivemos um tempo distinto. O pentecostalismo sofreu mudanças. Alguns valores preciosos se transviaram em vícios vexatórios para a igreja. Mas algumas transformações simplesmente seguiram o curso natural da vida. Diante disso, sinto necessidade de pensar os tropeços pentecostais, além das boas memórias já visitadas. Como também de indicar um caminho possível e necessário para revisitar nosso pentecostalismo.

Até aqui me referi apenas à herança bendita do pentecostalismo. Preciso também me lembrar do que carrego com lamento, ainda de minha infância.

Não demorou muito para descobrir nas aflições de meu pai o que bem depois compreendi com mais precisão. O mundo pentecostal estava profundamente comprometido com uma prática de poder perversa. Perdi a conta das vezes em que meu pai aguardou a chance de pastorear uma igreja no vasto Brasil assembleiano.

Recordo-me de alguns detalhes que faziam parte das muitas histórias de decepção. O povo da igreja, admirador de meu pai, tentava se articular de muitas formas contra os movimentos invisíveis dos bastidores políticos. Meu pai ouvia promessas de que tudo seria justo e que ele seria lembrado. No entanto, alguém sempre, por meios questionáveis, conseguia descartá-lo a despeito da vontade popular e impor outro que compusesse interesses políticos maiores. Foram muitas as vezes que vi meu pai chorar, minha mãe consolá-lo e ele, teimosamente, acordar no dia seguinte com a mesma capacidade de continuar sonhando e acreditando em um dia em que seria reconhecido o seu valor.

Também ouvi as tantas conversas sobre os tantos “esquemas” para que alguém se perpetuasse à frente de uma igreja, de uma supervisão, de uma convenção, ou mesmo da Convenção Geral das Assembléias de Deus (CGADB). Histórias como a de um porteiro que recebeu credencial de pastor de última hora para ajudar a eleger como presidente da convenção um certo líder, ouvi com uma freqüência vergonhosa. Coisas como estas foram ensinando ao meu coração, à minha inconsciência de então, o que hoje discirno com lúcida consciência, que o poder pentecostal confundiu-se rapidamente com um outro poder, articulado por gente que aprendeu a amar títulos, mando e prestígio humano.

Minha primeira tentativa de explicação é que o poder pentecostal comportou-se como uma habilitação para o desempenho de tarefas tão somente. Gente com poder faz mais e melhor. A conclusão óbvia foi que apenas os que recebessem tal virtude, o Batismo com o Espírito Santo, sinalizado primeira e necessariamente com a fala prodigiosa de línguas estranhas, teriam legitimidade para o exercício ministerial. Receber “poder” transformou-se em ter “poder”, legitimidade de mando e prestígio diante dos demais. Uma vez falando em línguas, o próximo passo era ser diácono. Vi tanto crente devoto e talentoso amargar o desprestígio diante da igreja! Vi tantos irmãos sinceros impedidos de desenvolverem ministérios na igreja porque não falavam em línguas! Também vi tanta gente de conduta questionável exercendo o mando apenas porque um dia falou em línguas estranhas! As disputas de poder, busca de títulos, hierarquização dos ministérios são características fortes e inegáveis dos ambientes pentecostais clássicos.

Mas, uma outra característica, esta mais recente e escandalosa, é a do envolvimento de líderes pentecostais com as disputas políticas seculares. Desde a Constituinte de 1988, nós pentecostais não conseguimos ficar de fora da lista de nenhum grande escândalo da vida pública. Negociações indecentes com forças políticas têm sido freqüentes na recente história pentecostal. Contam-se como piadas de crentes as participações de certos líderes políticos em cultos evangélicos, que não se intimidam em saudar os crentes com “a paz do Senhor” e proferir os jargões devidamente ensinados por seus assessores. Novamente, aqueles que foram ensinados a buscar o poder do Espírito, com estranha facilidade passaram a buscar o poder político.

Sofremos a mesma tentação de Jesus no deserto, “tudo isso te darei se prostrado me adorares”. O Cristo, cheio do Espírito no batismo do Jordão, prestes a percorrer o mundo com o evangelho, recusou-se a confundir o poder pelo qual veio com o poder político oferecido pelo Diabo. Jesus venceu, “somente a Deus adorarás, somente a Ele prestarás culto”. Nós pentecostais prostramo-nos diante do Maligno ao amarmos e promovermos este outro poder. Estamos no Congresso Nacional há duas décadas, mas não mais temos como emblema a integridade moral. Hoje, a bancada evangélica é vista como um dos grupos mais corruptos no trato com a coisa pública. Prostramo-nos também e de vergonha diante do povo brasileiro.

Outra leitura que faço é a da cria indesejada do pentecostalismo, o neopentecostalismo. Aqui me arrisco de novo em uma explicação. O neo-pentecostalismo nasceu do adiamento pentecostal da reflexão. Digo adiamento, porque não questiono a ausência de vocação para refletir de qualquer novo fenômeno religioso. A história ratifica o fato. Mas a dificuldade de se reinventar como movimento, a rigidez postergada da irreflexão ocasionou uma fissura do tamanho do neopentecostalismo.

As manifestações derivadas do neopentecostalismo cada vez mais bizarras e cada vez se substituindo mais rapidamente por outras, marca da lógica de mercado, foram recebidas com fluência no ambiente pentecostal clássico. Ávidos pelo poder em sua expressão mais performática, inconformados com a perda do fenômeno pentecostal das primeiras décadas, nós pentecostais tornamo-nos presas fáceis para a chamada teologia da prosperidade e movimentos da fé de origem norte-americana. Rapidamente nosso pentecostalismo migrou do fervor missionário para o êxtase narcisista. Lotamos auditórios para assistirmos o espetáculo de ilusionistas religiosos derrubando no chão crentes sugestionáveis. Escancaramos nossas portas para ouvir com ingenuidade pregadores influenciados pelo neognosticismo originado na Ciência Cristã, também exportado pela cultura evangélica norte-americana. Alguém já disse que os alemães inventaram a teologia, os americanos estragaram e nós consumimos!

Diante disso, proponho uma revisão de nossa pentecostalidade. Precisamos aprofundar o sentido de poder quando falamos do poder do Espírito. Enquanto movimento, o pentecostalismo não precisou fazer algumas reflexões. O fenômeno freqüentemente prescinde de reflexão. Mas o desenrolar do tempo encerrou o fenômeno, o que também é constituinte de um movimento, assim como foi no primeiro século da igreja cristã. O mundo mudou, nossas práticas mais antigas tornaram-se inócuas. Nossa linguagem expirou sua comunicação. Nossos cultos não reproduzem com naturalidade as mesmas experiências do passado. Toda reedição forçosa de um fenômeno espiritual torna-se artificial, efêmera e tende a descambar em manipulação inescrupulosa.

Proponho uma arqueologia de nossa alma pentecostal. Sem medo de descobrir o que hoje pode ser apenas um fóssil esquecido de nossas origens. Desconfio que “o poder pentecostal” é este fóssil de nossa espiritualidade a ser reencontrado. Acredito que o “elo perdido” de nossa pentecostalidade é a prática deste outro poder fossilizado por nossas buscas de expressão social e política. Cabe-nos parar. Pensar e converter-nos ao primeiro amor. “Volte para o lugar onde caístes”.

Como emblema do nosso pentecostalismo, o falar em línguas pode ser o ícone deste movimento aqui revisitado. Façamos do falar em línguas nosso ponto simbólico de reflexão e construção deste novo pentecostalismo. Dentro do discurso tradicional da doutrina pentecostal, o falar em línguas estranhas, a glossolalia de Atos 2, é o primeiro sinal necessário e evidência do Batismo com o Espírito Santo. As línguas estranhas são o fenômeno da segunda benção. Esta por sua vez, distinta da salvação, sujeita e posterior a ela, é o componente carismático de Deus para o cumprimento da tarefa missionária da igreja (At 1.8). A conclusão imediata da doutrina pentecostal é que ninguém está plenamente apto para o exercício ministerial sem o batismo com o Espírito Santo e este evidenciado pelo falar em línguas. Como também, o sinal de línguas, freqüentemente diferenciado pelos manuais pentecostais do dom de línguas, é a porta de entrada dos dons espirituais listados por Paulo(1Co 12).

A relação óbvia das línguas com o poder precisa ser enxergada na prática pentecostal. Quem fala em línguas tem poder. Os que ousam discutir a relação necessária do Batismo com as línguas ouve a questão sempre: mas como saber se alguém foi ou não batizado sem as línguas? Para conferir o estatuto de competência espiritual ao então batizado com o Espírito Santo precisamos de uma evidência forte. Para promovê-lo à elite dos contemplados pelo poder carecemos de uma indicação indiscutível. O que novamente indica que o falar em línguas alça o indivíduo à categoria dos que podem em detrimento dos que não podem. O critério de conferir cargos eclesiásticos ao que fala em línguas aprofunda a relação línguas-poder. E o faz de forma mais grosseira, porque agora quem fala em línguas é promovido na hierarquia de poder. Diácono, presbítero, evangelista e pastor, os homens do mando têm que carregar a chancela das línguas estranhas.

Lembro de falar em línguas pela primeira vez aos nove anos. O prodígio inexplicavelmente não se repetiu mais pelos próximos anos. Aos quinze, sofria por não falar em línguas. Entenda o que se passava em minha mente adolescente. Sonhava com o ministério pastoral. Mas não falar em línguas esbarrava meus planos. Cada apelo ao final do culto deixava minhas mãos molhadas, o coração em taquicardia. Ia à frente buscar novamente o batismo, mas voltava para o meu lugar decepcionado. Resolvi fazer um jejum de vinte e quatro horas, às vésperas de um final de semana com cultos de avivamento em nossa igreja. Um pastor norte americano seria o pregador. Na sexta-feira lá estava eu encerrando o meu jejum no culto. Ouvi a pregação com a certeza de que daquele dia não passava. Minha sorte mudaria. No apelo lá estava eu em uma das duas filas formadas nos corredores da igreja, percorrida pelo pregador que, um a um, impôs as mãos e rogou a Jesus o Batismo com o Espírito Santo. Minha vez chegou. Orou, orou e nada. Passou para o próximo e deixou-me arrasado. Desconfiei de meu valor. De minha vocação. Do meu sonho de um dia pastorear. Voltei para o banco. Lá estavam meus colegas ansiosos pela minha volta. A pergunta: e aí? A resposta envergonhada: não deu! Uma irmã do lado, com uma cara de revolta, olhou para mim como que me fuzilando: Como é que pode? Nem depois de jejuar você foi batizado? Ah se eu pudesse sair correndo para bem longe dali. Tempos depois voltei a falar em línguas. Não consigo me lembrar como aconteceu. Simplesmente apagou-se de minha memória. Apenas sei que um dia me dei conta de que falava em línguas estranhas. E o faço até hoje com gratidão a Deus.

Com muita freqüência ouço desabafo de pessoas aflitas dentro da igreja. Sentem-se excluídas por Deus da benção do Espírito Santo. São crentes leais. Homens e mulheres íntegros e apaixonados por Deus. Ouço de homens que morreram sem realizarem o sonho do exercício ministerial por também não terem sido contemplados pelo Batismo.

Esta perspectiva cria algumas situações no mínimo ridículas. Pessoas que falam qualquer coisa que se pareça com o que ouvem de outros. Assovios. Grunhidos. Glórias a Deus repetidos freneticamente até que se tornem impronunciáveis. – Fala “glória” bem rápido, irmão! Glu, glu, glu. Outros são ensinados a repetir o que estão ouvindo. Faz-se qualquer negócio para estar entre os abençoados. Para ser contado entre as mãos que se levantam e fornecem os números alvissareiros do pregador.

Há os pregadores que descobrem fórmulas de como levar o povo ao Batismo. Em um dia desses, um amigo confidenciou-me seu segredo avivalista: - Conto muitos testemunhos e depois ensino às pessoas que peçam uma vez só e depois apenas louvem e glorifiquem a Deus. É tiro certo! Perguntei-lhe: mas e o Espírito Santo? E o nosso relacionamento pessoal com Jesus? Se não fizer tudo como no figurino, Jesus não faz? Isso parece mais um abracadabra pentecostal do que uma visitação prodigiosa do Espírito Santo de Deus!

É preciso que se diga que por mais que funcione, a doutrina pentecostal do da evidência inicial do Batismo com o Espírito Santo é oca de conteúdo bíblico. Nos chamados quatro pentecostes de Atos (2.1-13; 8.4-25; 9.24-48; 19.1-6), nem todos registram a glossolalia e, exceto o do Dia de Pentecostes em Jerusalém, o sinal das línguas estranhas não é a única evidência. Luca lista também as profecias, adoração e alegria. Entre os samaritanos nada diz. Apenas afirma que receberam o Espírito (At 8.17). As línguas são um sinal freqüente, mas não um sinal imprescindível.

Nas cartas, onde se ensina sobre os dons espirituais, nada se fala sobre o Batismo com o Espírito Santo como evidenciado necessária e inicialmente pelo falar em línguas. Ao contrário, as línguas são listadas entre outros dons vários, cuja riqueza está na diversidade. Nem todos fazem as mesmas coisas nem experimentam os mesmos dons. É a vitória do imponderável Espírito Santo sobre a mesmice dominadora das práticas de poder humanas(1Co 12.28-31).

Não vemos os apóstolos recomendando às igrejas a busca do Batismo com o Espírito Santo. Ensinam a busca dos dons em sua diversidade. Falam a essas igrejas partindo do pressuposto de que já experimentaram a segunda benção. Mais ainda, em Atos, Lucas não descreve nenhum caso de batismo com o Espírito individual. Salvo o registro de que Paulo, após a oração de Ananias, foi curado de sua enfermidade e ficou cheio do Espírito. Todos os demais registros são de um fenômeno coletivo. O Espírito foi derramado sobre todos os que estavam no cenáculo em Jerusalém. Entre os samaritanos, Pedro e João impôs as mãos e eles receberam o Espírito Santo. Na casa de Cornélio, o Espírito desceu sobre todos os que ouviam a pregação de Pedro. Entre os discípulos efésios, Paulo os batizou nas águas e todos foram cheios do Espírito.
A experiência do Batismo com o Espírito Santo não é solipsista. Não se sabe de alguns do culto que não provaram. É comunitária, porque é uma experiência de relacionalidade e não de exclusividade. Os dons do Espírito, curiosamente, só se justificam na comunhão. Paulo não deixa dúvidas sobre isto na tríade de capítulos, 12, 13 e 14, da Primeira Carta aos Coríntios, onde ensina sobre o fervor inteligente dos dons no culto. 12.7: “A cada um, porém, é dada a manifestação do Espírito, visando ao bem comum.” 14.2-4 e 12: “Pois quem fala em uma língua não fala aos homens, mas a Deus. De fato, ninguém o entende; em espírito fala mistérios. Mas quem profetiza o faz para edificação, encorajamento e consolação dos homens. Quem fala em língua a si mesmo se edifica, mas quem profetiza edifica a igreja. Assim acontece com vocês. Visto que estão ansiosos por terem dons espirituais, procurem crescer naqueles que trazem a edificação para a igreja.”

Não há alguns batizados em detrimento de outros na igreja local, no ajuntamento dos irmãos. Quando um é, todos são. Esta é a lógica da Bíblia. Quantos foram batizados? Esta é a pergunta recorrente no ambiente pentecostal. Um equívoco. A pergunta bíblica não é esta, mas: A igreja já foi batizada com Espírito Santo? Isto significaria dizer que qualquer um que dela fizer parte torna-se participante da segunda benção, que certamente será por ele experimentada com intensidade em algum momento e partir de algum dom espiritual.

Finalmente, o dom de línguas, ao contrário do que somos levados a crer na ambiência pentecostal, não é um sinal de poder, prestígio e orgulho. É um sinal de fraqueza, humildade e esvaziamento. Falamos línguas que sequer conseguimos entender(1Co 14.14). O sinal mais freqüente do Batismo com o Espírito Santo é o da fala de algo que nós mesmos não conseguimos elaborar. Isto que recebemos de Deus, por sua graça, a salvação em Cristo é algo tão superior a nós, tão acima de nossos méritos e habilidades que sequer conseguimos fazer caber em nossa linguagem. Outras línguas são as que falam com satisfação, mas apenas para o íntimo de quem fala. Aquele que fala em outras línguas é lembrado e torna-se um lembrete de Deus de que é limitado. De que o Reino do qual participa não foi conquistado por suas habilidades e, portanto, quem quer que dele participe precisará depender do Espírito Santo de Deus, o Outro Consolador que nos guiará em todas as coisas.

O dom de línguas é um lembrete com doce vergonha da nossa incapacidade de fazer coisas. Precisamos de Deus. Precisamos uns dos outros. A descrição da igreja pentecostal em Atos não é de uma igreja potente e imponente. Mas de uma comunidade de irmãos que se amavam concretamente. At 2.44-47: “Os que criam mantinham-se unidos e tinham tudo em comum. Vendendo suas propriedades e bens, distribuíam a cada um conforme a sua necessidade. Todos os dias, continuavam a reunir-se no pátio do templo. Partiam o pão em suas casas, e juntos participavam das refeições, com alegria e sinceridade de coração, louvando a Deus e tendo a simpatia de todo o povo. E o Senhor lhes acrescentava diariamente os que iam sendo salvos.” A irracionalidade do dom de línguas é percebida com cuidado pelo Apóstolo Paulo. Sua advertência nos leva a exercer este dom de fora para dentro. Falando consigo mesmo. Como que se convencendo pelo Espírito de sua inadequação diante da grandeza da obra de Deus em nós. Fale consigo mesmo e converta-se ao irmão. Fale consigo mesmo e torne-se mais permeável ao próximo. Um homem melhor. Uma mulher melhor. Gente enternecida diante de Deus e do mundo.
No dom de línguas somos levados a um esvaziamento de poder. Nosso poder caído, de gente pecadora. O poder de dominação do outro e perpetuação de si mesmo é substituído por um outro poder. Poder do Espírito. Bem maior do que a nossa vã linguagem pode pronunciar. O mesmo que veio sobre Jesus e o capacitou a encarnar o amor de Deus entre os homens, mesmo sem ter falado em outras línguas. O mesmo poder que capacitou Jesus a fragilizar-se como pessoa até a morte de cruz(Fl 2.5-8). A enfrentar o poder das Trevas no palco do Calvário. A vencer o poder maligno não com mais poder, mas com outro poder. O poder do amor que se enfraquece para salvar.

Mais do que nunca, nosso pentecostalismo precisa redescobrir sua busca de poder. É inadiável uma renúncia deste poder violento de dominação religiosa. Não somos chamados por Deus para abalar nossas cidades com o poder do Espírito. Nossa gente já está abalada demais pela violência, pelos maus governantes, pelo mercado implacável, pela competitividade desumanizante, pela miséria social para sofrer mais abalos.

Nossa vocação pentecostal precisa seguir os passos do Mestre. Cheio do Espírito(Lc 3.21-22; 4.1-13), antes de qualquer tarefa, venceu a tentação do Diabo de viver por um outro poder que não o que recebera no Jordão sob a fala amorosa do Pai: “Este é o meu filho amado em quem tenho prazer.” Se no Jordão, após o batismo de João, Jesus foi batizado no Espírito Santo.

No deserto, solitário e suscetível, foi batizado pelo Espírito em nossa humanidade. Na oferta oportuna do Diabo, Jesus renunciou o poder de não ser gente, de embrutecer diante da mais frágil manifestação de fraqueza humana, a fome: transforma esta pedra em pão. Reduzir um tempo de intimidade com Deus e com a sua humanidade à magia de atalho para a saciedade seria ridicularizar tudo o que Deus já havia ofertado. Nem só de pão viverá o homem, mas de toda a palavra que vem da boca de Deus.
Recusou-se ao poder de conquistar o mundo em fama e glória, de ter uma imagem brilhante de poder: tudo isto de darei se prostrado me adorares. O poder que veio exercer não atrairia o mundo pela glória e fama, mas pela graciosa entrega de si mesmo em amor. “Mas eu, quando for levantado da terra, atrairei todos a mim”(Jo 12.23-33).

Deu as costas para o poder de ser uma exceção de segurança e felicidade em um mundo inseguro e infeliz: “Se és o Filho de Deus, joga-te daqui para baixo. ‘Ele dará ordens a seus anjos a seu respeito, para o guardarem; com as mãos eles o segurarão, para que você não tropece em alguma pedra’”. Sua resposta tem que ser a nossa: “não colocarás o Senhor teu Deus à prova”. Uma gente cheia do Espírito não carece de espetáculos narcíseos para saber quem é. Já sabemos quem somos. O Espírito já nos foi dado(Lc 11.13). Qualquer outra prova é uma exigência idólatra e tola.
Alguém me perguntou recentemente: qual é o seu pentecostalismo?
É este.

Elienai Cabral Junior.